segunda-feira, março 12, 2007

Anúncio

Diz a notícia do Correio da Manhã que já data da semana passada:
"Burlas até 95 € deixam de ser crime!!!"

Segundo a mesma fonte, algúem lesado em 94,99 € terá de apresentar uma queixa aos tribunais dos pequenos crimes em que as despesas serão mais ou menos 150 €

Ora, com isto resolvi iniciar o recrutamento para a nova empresa que criei e que tem por nome "94,99"

Anúncio:

A 94,99 vem por este meio abrir concurso público para o cargo de burlão ou assaltante com carteira profissional cat.1 (roubos aé 94,99 €).

Tens menos de 35 anos e queres iniciar uma carreira de sucesso, tens boa apresentação e és ambicioso? Falas inglês, frances e espanhol (Factor eliminatório para a zona do Algarve)?

Oferecemos: Formação adequada, Ordenado base + 25% comissões e pistola de alarme (só deve ser usada em caso de extrema necessidade)

Tarefas de um burlão ou assaltante de cat.1:
- Fazer a apresentação ao cliente; Ex: - Boa tarde, o meu nome é Gaspar Anastácio e sou comissionista da 94,99. O senhor importa-se de me fornecer a sua carteira, telemóvel e outros bens até totalizar um prejuízo máximo de 94,99 €?
- Mostrar a pistola apenas em situações de resistência do indivíduo assaltado.
- Explicar sempre ao cliente que o que estamos a fazer não é crime e que somos uma empresa credênciada para o efeito
- Agradecer e dar contacto para eventuais dúvidas ou esclarecimentos.

Responda a este anúncio para 94,99 - Rua do País que Temos, Apartado qualquer coisa - 2º CM. Portugal

sábado, fevereiro 24, 2007

INTELECTUAL

- Pera aí, vou ali cumprimentar um bacano do meu bairro que não vejo à bué.
- Yá!
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- Bacano, comé? Tá-se bem ou quê?
- Yá!
- Á bué que não te via, tás-te a orientar ou quê?
- Yá!
- Eu cá ando, sabes comé, tipo coiso e tal, tás a ver?
- Yá!
- Epah, curti de te ver, safa-te aí, ya?
- Yá!
- Vou ali ter com a minha dama, a gente vê-se por aí!
- Yá!
- Fica!
- Yá!
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- Epah, não via o bacano à bué de tempo, curti ao molho voltar a trocar umas ideias com o tipo.
- Yá!

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Evolução cronológica do ABORTO

Fevereiro de 2007: A lei do aborto é aprovada em referendo

Novembro de 2007: O primeiro aborto legal é feito em Portugal

Março de 2009: Governo quer que os hipermercados passem a fazer abortos

Janeiro de 2010: Uma mulher entra numa tasca e pergunta: "Desculpe, fazem abortos?"

Dezembro de 2010: O marido de uma mulher entra na mesma tasca e pede o livro de reclamações. Ao que parece, a mulher não foi devolvida nas mesmas condições após o aborto daquela tarde.

Março de 2011: Até já o macaco Gervásio sabe separar os vidros, os plásticos, as pilhas, o papel e os fetos, nos novos caixotes de reciclagem que as câmaras municipais colocaram nas ruas.


Janeiro de 2012: Uma mulher vai ao hipermercado comprar o kit "Aborto: Faça você mesmo, sem sair de casa"

Setembro de 2012: Uma mulher chega atrasada ao emprego. Motivo: "Desculpe chefe, tive a fazer um aborto e atrasei-me um pouco"


Dezembro de 2012: Vai a referendo a despenalização da injecção letal para maiores de 65 anos que já não tenham qualquer utilidade social.
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E eu votei SIM no referendo :)
Abraço!!!

WORKSHOP DE ESCRITA PARA NOVELAS - GIUIA ESSÊNCIAL

1º Passo: Escolhe um dos seguintes temas, como fundo principal da história da novela:
a) Uma empregada que se apaixona pelo patrão
b) Dois irmãos gémeos separados à nascença
c) Malta com problemas de teor sexual e sentimental que passam a vida a envolver-se com amantes, a divorciarem-se, a enrolarem-se, etc.
d) Alunos de uma escola que fazem não sei bem o quê e onde há uma banda que se torna famosa e até tem direito a chupa-chupas com o seu nome, ou ropinhas coloridas com uma inscrição fatela.

2º Passo: Juntar meia dúzia de desculpas sem nexo para cada vez que a vilã é apanhada a fazer algo menos positivo pelo marido, amante, namorado ou melhor amigo. Este último acredita sempre nas mentiras do primeiro, por mais estupidas que sejam as desculpas, excepto no último episódio, porque de repente tornou-se na pessoa mais inteligente da novela e essas descupas descabidas já não o enganam.

3º Passo: Uma das personagens tem de estar casada ou ter casamento marcado com alguém que simplesmente odeia mas que tem de suportar por nenhuma razão viável ou sequer bem argumentada.

4º Passo: Os jovens têm de falar em calão, excepto um que é o mais intelectual dos jovens e que fala com palavras muito caras e diz coisas que ninguém percebe (ou que toda a gente percebe mas o produtor da novela pensa que ninguém percebe)

5º Passo: É essêncial que haja sempre pelo menos uma pessoa muito boazinha e uma pessoa muito má.

6º Passo: Pelo menos uma das crianças tem de sofrer por causa dos pais, que ou morreram, ou discutem muito, ou estão separados.

7º Passo: Durante a novela, deve morrer pelo menos uma das personagens da mesma.

8º Passo: Casar ou juntar o maior número de casais possível nos últimos dois episódios.

9º Passo: Também nos dois últimos episódios, todos os mauzões devem morrer ou ser presos.

10º Passo: Nunca esquecer todos os finais felizes que se puderem arranjar às personagens envolvidas no trama.

Nota de rodapé: Durante o desenrolar da peripécia é importante enrolar a história o mais possível, para que a história dure pelo menos quatro meses no ar. Para novelas que ultrapassem um ano de duração, as histórias devem mesmo enrolar de forma a que o casal principal se separe e se volte a juntar pelo menos trezentos e vinte e oito vezes ao longo dos cerca 500 episódios (repetições passadas de manhã, à tarde e ao fim-de-semana não incluídos)

quarta-feira, março 08, 2006

Hoje deu-me uma branca

A pomba branca apareceu por detrás de uma nuvem branca e foi justamente poisar no peitoral da janela de Dona Branca. A janela da casa de Dona Branca também era branca, bem como a casa que era uma casa branca numa rua de casas brancas e que por isso era uma rua branca. Branca era ainda a toalha de Dona Branca, estendida à janela branca da casa branca da rua branca onde a pomba branca vinda por detrás de uma nuvem branca foi ousar deixar um presente. Dona Branca, que na mesma altura estendia uma camisa branca que o marido comprara a uma mulher branca nessa mesma tarde de céu coberto por nuvens brancas, ficou danada com a pomba branca poisada na beirada da sua janela branca e que sujara a sua toalha branca lavada com o melhor detergente que deixa a roupa mais branca. Danada que ficou a Dona Branca, eis que pegou na sua chinela branca de uma marca branca e açoitou a pena branca da pomba branca vinda por detrás de uma nuvem branca e que atrevida poisara naquela janela branca de uma casa branca de uma rua de casas brancas e que por isso era uma rua branca. Bem-feita para a pomba branca, para não se voltar a meter com mulher preta.

Tantos mundos num mundo

Com passos lentos, entro noutros mundos, duvidoso, cauteloso, devagar, não preguiçoso…

Dou passos seguros, caminho virtudes, demando defeitos, encontro vicissitudes em auto-ditos perfeitos…

Reconheço mundos passados em mundos presentes e cabem neste mundo tantos mundos diferentes…

Eu pergunto ao mundo:

- Óh mundo, por que és tantos?!

E o mundo responde:

- Porque também tu és uns quantos!!!


Falo ao mundo por letras e canções, comento os mundos por silêncios, palavras e metáforas, tento o mundo questionando as tentações e o mundo responde tentando ainda mais, e eu pergunto ao mundo:

- Óh mundo, por que me tentas?!

E o mundo responde:

- Porque quando achas que tens tudo, já não sabes para onde vais!!!


Com passos lentos, largo mundos antigos, passados, velhos, venenosos, pela memória esquecidos, tristes, paralelos, perigosos, árvores de frutos apodrecidos…

E ao fundo, no fim do caminho de um mundo, procuro princípio, entusiasmado, apaixonado, deixo para trás o terreno, abandonado, encontro sentidos novos que levam a todo lado…

Na demanda de mundos que não são meus, caminhos pisados de mundos cruzados, tantos mundos num mundo para conquistar, tantos mundos num mundo para conhecer, tantos mundos num mundo para tentar, tantos mundos num mundo querem meus passos lentos pisar…

E eu vou por aí, com passos lentos por outros mundos, sempre tentado pelo quero, posso e mando, e são tantos os mundos num mesmo mundo, aqueles por onde eu ando…

Ando por onde há caminho, caminho por onde quero, quero tudo o que posso, posso tudo o que desejo, desejo tudo o que houver e que haja tudo o que eu quiser…

Reflexões de Eu e o Universo II

Alma impura...

Òh alma impura que sou eu, porque te escondes de mim e não em mim?!
Onde vais tantas vezes sem que regresses a mim?!
Que te faço, para tamanho afastamento?
Repudio-te com os meus pecados?
Mas não tens também tu, os teus?
Porque há pecados do corpo e pecados da alma, sei-o eu...
Então, porque te envergonhas de mim, se não me envergonho eu de ti?!
Tivesse eu a certeza de que vives de mim e castigava-te...
O mais provável, é que viva eu de ti e talvez por isso me castigues!
Anda!!!
Perdoemo-nos um ao outro e façamos as pazes, para que possamos caminhar juntos no que eu sou verdadeiramente...
Somente assim nos tornaremos mais fortes naquilo que sou:
- eu, na terra, com a convicção de que tudo vale a pena;
- tu, por esse universo fora, mais experiente na construção de mim...

Fujo por instinto...


Caio de súbito, nas profundezas de minha memória implícita, herdada de genes que me habitam...


O passado transpira em minha pele, as estimulantes experiências deste corpo que me suporta a alma amedrontada!


Reagem-lhe os sentidos, nesta reacção química que desperta o fluxo sanguíneo de minhas tensões acumuladas...


Meus músculos contraem-se num presságio de fuga, e minha dor morre por instantes no sangue que se segura sem querer verter...

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Janelas...

A janela do meu quarto tem vista para a rua;
A janela da minha mente tem vista para o Universo;
A janela da minha alma, fechaste-a!!!
Por quanto tempo?! Não sei...
Alguém virá para voltar a abri-la?! Tão pouco o sei...
Todos os dias me lembro disto; não sei bem porquê, não sei bem por quanto tempo mais...
Mas sei que já passou algum tempo, e as sombras e os fantasmas ainda moram aqui!!!

Medo...

Passeio pela calçada, onde almas temerosas se cruzam comigo, num bater descompassado de corações que se escondem do mundo...

São almas de pessoas cheias de segredos temerosos, envoltos na escuridão de silêncios absolutos. Silêncio de desabafos emergidos no fundo do espírito, cansados de ninguém os ouvir!

São almas de pessoas sem espírito para continuar a lutar, de pessoas que desistem por medo do “que virá depois”, de gente que teme perder sem compreender que mesmo as vitórias pedem sucessivas derrotas...

São corpos que transportam cabeças cabisbaixas, de dor abastadas, tomadas por uma possessão irreversível de medos sem sentido. Evitam conflitos com manobras audazes, transportando depois consigo, gestos irrequietos e assustados de medo dos demónios que podem voltar a qualquer momento. Demónios que podem ser muitos e que nos atormentam. Demónios que somos nós que criamos ao fugirmos das lutas que são nossas. Demónios que nos vencem quase sempre!!!


O medo é, regra geral, o nosso pior inimigo e a base de todos os nossos males.

Sem medo, pertenço a mim mesmo; com medo, pertenço ao que me amedronta...

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Vou escrevendo

Vou escrevendo…

Escrevo desmesuradamente retalhos de vida que vivem em mim, vou de encontro à alma que me toma o corpo exorcizada nas palavras que transpiro no papel.

Pensamentos esvaem-se errando dentro de mim e eu calo o meu culto num desalento pisado pelo orgulho.

Cruzo-me com olhos que olham sem ver, olhos que vêm sem reparar, vozes que falam sem dizer o que outros tentam dizer sem falar…

Inspirado na nostalgia das imagens que vivem em memória minha, embevecido em lágrimas que mastigo na procura dos sentimentos que ficam submersos, divagando num mundo de sentidos, medito nos meandros do silêncio que me tolda o pensamento liquefeito em águas que nascem nos olhos dessa gente feliz com lágrimas que solta os seus pecados na calçada quente que o sol aquece e os meus pés vão pisando sem pena nem consciência…

E a caneta vai sendo a minha sombra, a sombra que me acompanha, fiel e nunca me abandona, ausência de luz que de mim vive e de minhas mudanças se transforma...


Vou escrevendo… Coisas com e sem sentido… Sobre mim… De ti… Inspirado neles e nelas… Por esse Universo fora!!!

Vou escrevendo…

Tu de um lado e eu do outro

Tu de um lado e eu do outro...
Olho para ti e vejo alguém sem alma, com uma existência limitada, sem um nome sequer...
E eu aqui, com uma alma, com uma existência vivêncial preenchida, com um nome até!!!
Eu, saio daqui e continuo a minha vida por aí, por um mundo cheio de almas com existências e vivências preenchidas e com nomes...
Tu, sais daí e morres por momentos, até que eu te encontre de novo nalgum lado sem que antes tenhas estado em lado nenhum. Se é que existe um sítio que se chama lado nenhum, onde o nada impera, se é que o nada existe, onde tudo é vazio, sem tempo e sem espaço, num lugar que não é sítio. E, se existe, é lá que tu moras, ou morres, como queiras, enquanto estás ausente daí e dos outros sítios onde te encontro. E vou-te encontrando até me fartar de ti, até que já não me sinta bem a olhar para ti, até que a velhice do meu espírito e do meu corpo me desafiem a deixar de olhar para ti com medo do que possa encontrar, até que me canse de achar que tens a imagem que eu quero que tenhas. Porque, quando esse dia chegar, visitar-te-ei menos vezes, talvez raramente, talvez nunca mais, e aí, morrerás por bem mais tempo ou para sempre naquilo que é a tua existência limitada. No final de contas, também não te fará grande diferença, desabitada de alma que és...
Porque afinal, não passas da minha imagem no espelho!!!

Belo, o horror de ser

O sangue precipita-se sobre o soalho gélido, esfuma-se a alma do tipo perante meu olhar incrédulo, a faca na mão direita, o punho que não cede. O tipo entrou-me em casa às três da manhã, o frio da madrugada não me impediu de me levantar a fim de apurar os ruídos que entoavam do lado de lá da porta, dou de caras com o vulto, o homem a ameaçar-me com um martelo, olha que te mato, volta para a tua cama e deixa-me acabar o que vim aqui fazer, e eu não volto, não tenho medo e agarro a faca com a força de quem segura uma espada, grito e vou-me a ele, tenta acertar-me com o martelo, em vão, já é tarde, tem a faca a sair-lhe do estômago, o sangue a brotar-lhe dos lábios finos e rasgados do frio, o rosto a precipitar-se com violência a caminho do chão, o choque, o barulho ensurdecedor do gemido agudo que a sua voz ainda consegue soltar, a beleza da sua imagem esvaída em sangue sobre um chão que há pouco fora lavado, o cheiro da lixívia e o cheiro do sangue casados por momentos. Eu fico ali a olhar, a gozar aquela imagem cruel, a rogar de mim os meus sentimentos mais perversos, a invocar o meu sadismo, a descobrir no horrível a beleza, a saciar a minha sede de ser no não ser de uma inexistência que aquele se tornou!!!

Viagem

A custo, abro os olhos lentamente. Na mesa-de-cabeceira a luz vermelha que emana do rádio despertador marca três e quarenta e cinco. 345 de uma madrugada mais fria que as anteriores neste início de primavera. Os meus braços adiantam o destapar do meu corpo antes que o próprio cérebro avance com o raciocínio. Num movimento pausado – parece que em câmara lenta – levanto-me do leito que me acolhe as noites e dirijo-me quase como que flutuando sobre uma camada estranhamente maleável onde os meus pés assentam, para a casa de banho que fica ao fundo de um corredor que hoje parece mais longo que ontem. Ao chegar, não levo a mão ao interruptor mas mesmo assim a luz acende-se como se de magia se tratasse. A minha mente parece não demonstrar qualquer estranheza pelo ocorrido e o meu corpo avança seguro até ao lavatório. Desta vez, as mãos executam o movimento próprio que me permite abrir a torneira, mas para minha surpresa, nem uma gota de água se precipita sobre o mármore. Por instantes, o meu olhar fixa-se sobre o espaço exacto onde a água devia estar a correr. Pela primeira vez, a estranheza começa a ganhar algum espaço no abismo que a minha mente se tornou. Fecho os olhos por um curto milésimo de segundo e quando volto a abri-los tenho a certeza de que estou a contemplar o espelho que se encontra por cima do lavatório. O bater do meu coração parece agora bombear toneladas de sangue sobre as artérias do meu corpo assustado pela ausência de imagem do outro lado do espelho. Eu não estou lá! Sei que estou aqui deste lado mas não existo no reflexo. O espelho mostra-me os objectos que comigo dividem este espaço mas eu não estou lá. Através do espelho, consigo ver perfeitamente o cortinado que se encontra nas minhas costas, como se o feixe do reflexo me atravessasse o corpo sem se dar conta da minha existência. O coração parece agora querer explodir, as artérias parecem querer rebentar, os olhos incham com as lágrimas que o medo desabou sobre a minha alma perdida e uma dor imensa toma-me o corpo como sua morada e intensifica-se a cada momento, a cada segundo que passa. Quando aparento não aguentar mais tanta dor e tanta dúvida, eis que apareço de novo no quarto, renovado, com uma calma que até a mim me causa uma certa estranheza, pairando a dois metros de distância do meu corpo sobre a cama, levitando sobre este, olhando-o com a curiosidade de quem repara em algo que ainda não conhece, com o olhar atento de que vê algo que nunca viu. Lá em baixo, pareço estar a dormir profundamente, em paz comigo e com o Universo, pouco preocupado com as adversidades da vida, num sono que transpira segurança e orgulho no que já foi feito. Gosto daquela aparente segurança e tento chegar mais perto de mim mesmo. Aproximo-me com um certo custo e tento agarrar a mão esquerda que descansa sobre os lençóis. No momento em que a consigo agarrar, entro numa espécie de abismo que me leva por um túnel aparentemente infinito e do qual brotam memórias insignificantes, luzes fortes e estranhas e músicas que não me lembro de ter ouvido em lugar nenhum. Na realidade, o precipício dura um milésimo de segundo apenas, mas parece durar uma eternidade, como se tudo o que conhecemos acerca da teia do espaço e do tempo perdesse todo o sentido naquele momento. De súbito, o precipício acabou e o meu corpo estremece sobre a cama. As minhas pálpebras parecem estar pesadas. A custo, abro os olhos lentamente. Na mesa-de-cabeceira a luz vermelha que emana do rádio despertador marca três e quarenta e cinco. 345 de uma madrugada mais fria que as anteriores neste início de primavera.

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A perfeição

- Buscas a perfeição?!

- Busco, pois...

- Qual perfeição?

- Procuro, pura e simplesmente a perfeição...

- O que é perfeito, afinal?!

- Alguma coisa deve ser...

- Haverá algo tão bem concebido, que não contenha imperfeições?

- Penso que sim...

- Que piada pode ter, algo perfeito?!

- Toda, acho eu...

- Nenhuma, digo-o eu com convicção!!!

- Porquê?!

- Porque, ao descobrirmos algo perfeito, se lhe tocássemos na imperfeição que somos, este logo se tornaria imperfeito...

- Então, de que vale algo perfeito se não lhe podemos tocar?!

- De nada, digo-o eu, convencido do que digo...

- Nesse caso, ainda bem que não existem coisas perfeitas...

- Exactamente! Seria uma maçada e só contribuiria para nos apercebermos do quanto somos imperfeitos.

- Então, é perfeito não haver coisas perfeitas...

- Nem mais... É perfeito não haver coisas perfeitas!

Amor

A lua reflectida em nossos olhares, donos de um brilho natural que nasce fundo na alma que nos toma os corpos colados à deriva, imersos em sentimentos que se desdobram em palavras doces trocadas ao ouvido, em carinhos de dedos imponentes, em beijos mimosos e em silêncios mágicos...


Da lua cheia que nos ilumina e abençoa, caminhamos para o soalho da casa que nos acolhe os corpos aquecidos pela lareira que começa a bafejar através da chaminé, onde nos enrolamos silenciosos nos segredos dos lençóis, desprovidos de ódios, muito cônscios dos sentimentos que nos navegam à flor da pele, transparentes e naturais. Envolvidos em aromas que se evolam em nossos perfumes corporais, consumamos sóbrios, actos, que este amor que nos toca, nos ensinou...


Amor, que nos rouba das raivas e dos ódios manifestados em outras ocasiões, fazendo-nos esquecer momentaneamente um punhado de coisas bizarras reduzidas a poeira...


Amor, que se manifesta de forma fulgurante em nossos sentidos...


Amor, que é grandioso, imponente e majestoso em toda a sua plenitude, e que se impõe mais forte sob a queda dos maus pensamentos arrebanhadores de almas impuras...


Amor, que é o maior afrodisíaco para este sexo louco que é a vida, e que nos espera capazes de lhe dar-mos muitos orgasmos...


Amor, que nos mostra a esperança que vive para além do que vemos...


Amor, que é o verdadeiro sentido da existência...


Amor, que é tudo isto e mais alguma coisa!


O amor é vida e a vida é bela!!!

O Tempo

O tempo é algo estranho! Assemelha-se a um tapete rolante com destino indeterminado...

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Uma vez em cima dele é impossível saltar fora, e a partir daí – regra geral – temos duas escolhas:

- Caminhamos ao seu ritmo e vamos acompanhando e desfrutando daquilo que este nos proporciona durante a viagem;

- Sonhamos com as metas por onde este passa, mas por descuido ou falta de pedalada vamos desperdiçando cada uma dessas metas, até que nos apercebemos que o tapete anda a 50 e nós a 10, e assim – quando chegamos aos sítios – as portas por onde o tapete passou já se encontram fechadas.

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Entretanto – mais raros – existem os iluminados, seres que regra geral estão vistos como génios ou grandes artistas, mas que na verdade nada têm a mais que você ou eu, a não ser o facto de se adiantarem ao “tapete voador do calendário” – como lhe chamou Gabriel O Pensador num dos seus mais recentes êxitos – e que têm a ousadia de prever em vez de sonhar, de arriscar em vez de desejar, de fazer em vez de querer, superando expectativas, tentando estar sempre um passo à frente no tempo dos outros, patrão dos outros, suporte dos outros...

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Estes iluminados – que não são escravos do tempo – criam as suas próprias portas em vez de aproveitarem as portas que o tempo abre, correm quando os outros andam, voam quando os outros ousam correr e ultrapassam as metas mesmo antes destas existirem na cabeça dos outros...

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Do que precisa para ser um iluminado?

De vontade, de querer, de correr ou de voar quando preciso, de criar, de um pingo de sorte – que depende sempre mais da nossa atitude do que de superstições -, de inventar portas quando elas não estão lá, de prever em vez de sonhar, de arriscar em vez de desejar, de fazer em vez de querer...

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Tente!!!

Talvez valha a pena!!!

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Como dizia o maior de todos os poetas – isto pode ser discutível para alguns -, o senhor Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena!"

Num mundo paralelo

Num mundo paralelo, eu desci as escadas depois daquela troca de olhares – a mais intensa troca de olhares que tive em anos – e depois de ter olhado para trás e ter reparado que acompanhavas o movimento do meu corpo sobre os degraus de madeira que me levaram ao primeiro andar…

Num mundo paralelo, eu – após ter descido as escadas – pedi-te desculpa pelo atrevimento e disse-te isso mesmo:
- Esta foi a troca de olhares mais intensa dos últimos anos da minha vida.

E num mundo paralelo, talvez te tenha dito que tens uns lindíssimos e expressivos olhos negros…

E nesse mesmo mundo paralelo, puxei de uma caneta que trago sempre no bolso do casaco e deixei-te o meu número de telemóvel, admitindo que o pudesses deitar fora no preciso instante em que te deixasse sozinha…

No dia seguinte, talvez ligasses ou deixasses uma mensagem, não sei, nunca hei-de saber!!!

Mas assim, sei que não ligas de certeza, porque eu não tive a espontaneidade, ou a coragem – ou seja lá o que for que me faltou – de ter descido essas escadas…

Por que estou arrependido?!

Porque, regra geral, só me arrependo daquilo que não faço…

Não havia tempo para mais?

Por um momento, desprego o olhar do chão onde outras almas pecaminosas soltam os seus pecados e olho o céu azul, esse tecto de todos nós a que levantamos as mãos a fim de uma ajuda divina…

Lá em cima, um avião com destino desconhecido voa rumo a norte, desenhando no horizonte, um risco curioso que sigo com os olhos, procurando-lhe um fim que muda a cada momento.

Assim é a vida das pessoas, mudando a cada instante, embora não as vezes suficientes para nos tornar mais ricos.

O avião que me sobrevoou faz-me pensar nos sonhos de criança e faz-me perceber que nunca – jamais – chegarei a ser piloto…

De súbito, passam-me mil imagens do que eu nunca vou ser, limitado que estou – ou que julgo estar – a ser aquilo para que as minhas bases me prepararam.

E nesse mesmo instante apercebo-me de que jamais serei um astronauta, ou um membro importante de uma força especial, ou um actor reconhecido pelo seu talento, ou um músico, ou um pintor, ou um jogador de futebol, ou um grande treinador, etc, etc, etc…

Apercebo-me ainda de nunca serei um poliglota, ou um génio matemático, ou um grande mestre de artes marciais, bem como nunca terei o conhecimento que outros conseguiram adquirir…

Apercebo-me que jamais conhecerei mil e uma sensações a que outros tiveram direito – ou que adquiriram esse direito.

Naquele momento, sei mais do que nunca que uma vida só não chega para nada!

Uma vida só é muito pouco perante tudo aquilo que havia para podermos ser e que nunca fomos – ou que nunca chegaremos a ser.


Naquele momento, ganha ainda mais sentido uma frase que partilhei com um amigo, uns meses antes:

“O cúmulo da pobreza é sabermos que existe um universo com milhões e milhões anos-luz por explorar e contentar-mo-nos em viver toda a nossa vida num espaço com pouco mais de 40 ou 50 m2”


Hoje, acrescentaria ainda:

“Aquilo que eu sou, vê-se imensamente diminuído perante aquilo que eu não sou…”


E será que não há mesmo tempo para mais?!

Longa existência

Estava quieta a um canto, parecendo completamente imóvel.

Podia passar assim os dias, sem que ninguém desse conta que ela existia.

Mesmo assim, já tinha viajado muito, ao longo de toda a sua imortalidade.

Andou por sítios onde outros não ousam sequer sonhar em lá chegar.

Já tinha passado por vários estados de espírito...

Levou muitos pontapés durante a sua longa existência, mas se pudesse falar, tinha também, algumas boas histórias para contar.

Testemunhou acontecimentos de que alguns se envergonhariam se soubessem, mas também assistiu a bravos eventos que orgulhariam a quem de direito.

Durante a sua quase eterna vida, nadou por rios de toda a parte, às vezes arrastada pelas correntes; andou por imensos caminhos deste mundo, às vezes arrastada pelo vento; subiu e desceu montes, umas vezes aliada e outras vezes zangada com o clima; frequentou casas e quintais de gente rica e gente pobre, uns julgando-a preciosa, alguns julgando-a portadora de alegrias e mais valias, outros julgando-a só bonita, e outros tantos sem dar conta da sua existência; foi vista e admirada, mas também foi pisada e humilhada...

Teve momentos bons e teve momentos maus.

Agora, descansava quieta a um canto, parecendo quase imóvel, talvez à espera que alguém lhe desse um pontapé, ou ventos fortes se fizessem sentir, ou as águas das cheias a arrastassem dali, ou alguém se lembrasse de a atirar ao rio ou ao mar, e aí, a viagem recomeçasse...
No fundo, sentia que era uma pedra como outra qualquer, que já tinha passado por vários estados de espírito, entre eles o gasoso, o líquido e agora, o sólido...

O Patife

- Por onde andará o patife?

Lídia calculava que andava galdéria nova no pé de Mário. Fazia quase um mês, precisamente vinte e nove dias, talvez perto de umas setecentas horas, que Mário Neta inventara aquela primeira mentira desde que trabalhava na ‘Paraíso Electrónica’.

- Vou chegar mais tarde a casa por causa de uma reunião de última hora. Não contes comigo para jantar. – Disse com um nervoso miudinho a denunciar-se-lhe na voz ao telefone.

Desde então, dia sim, dois dias não, eram dias de reuniões de última hora, pelos motivos mais bizarros que envolvem os compromissos laborais. A partir de uma certa altura, até o nervoso miudinho se matou na voz agora segura, do ingénuo engenheiro.

- Tão ingénuo, o coitado... Pensando ele que eu nem desconfio de nada, convencido que está de que é um grande artista e que só não está a fazer teatro num dos grandes palcos deste país, pela falta de oportunidades evidente que a cultura proporcionou aos tipos da sua geração. – Pensava Lídia.

Nem tudo tinha sido mau, quanto à mudança de Mário Neta para a ‘Paraíso Electrónica’, cargo de subdirector oferecido pelo prestígio conseguido como chefe da secção de contabilidade da ‘Worldatrónic’, empresa multinacional para a qual trabalhava até bem pouco tempo antes... Até um tal de Doutor Figueiredo engraçar com o seu intelecto e com a sua capacidade de liderança e oferecer-lhe de mão beijada o tal alto cargo na ‘Paraíso Electrónica’, “aonde”, dizia o slogan, “o paraíso pode ser tecnologicamente evoluído”. A princípio, foi óptimo o facto de ir ganhar quinze vezes mais do que auferia na ‘Worldatrónic’, “aonde”, dizia o slogan “o seu mundo tem mais luz”. Com mais dinheiro veio mais liberdade... A liberdade de poder escolher entre o que se quer roubar à montra da loja da baixa da cidade e o que se quer lá deixar. A liberdade de poder escolher entre uma casa cara na avenida principal de Terranova ou uma casa cara no sítio mais sossegado cá da nossa terra. A liberdade de poder escolher entre comprar a televisão grande de ecrã plasma, comprar a televisão grande de ecrã normal, ou comprar as duas, uma para a sala de estar e a outra para a sala de jantar.

- Ter dinheiro é óptimo quando significa ter liberdade... Liberdade de se poder escolher. Quando se trata de ter poder, é mau... Sobe-nos à cabeça. Foi o que aconteceu àquele desgraçado! Com o tempo esqueceu-se de onde veio, sentiu-se poderoso e com dinheiro para comprar tudo e todos, e vai ele lançado, passando por cima dos sentimentos de toda a gente, incluindo dos meus, a mulher que à cinco anos prometeu amar para toda a vida, nos bons e nos maus momentos. Mentiroso... Desgraçado!!!

Lídia perdia-se em lágrimas, desesperada por não saber das andanças de seu marido, quando este entrou em casa com um largo sorriso de orelha a orelha, em antítese ao rosto apresentado pela pobre mulher.

- Trago óptimas notícias, Lídia. – Gritou alegremente como quem canta alto, sem reparar sequer, nas lágrimas que nasciam no abismo sentimental chamado Lídia.

- Conta-mas então... – Rematou Lídia, disfarçando as lágrimas e os soluços.

- A verdade meu amor, é que não tenho andado em reuniões de última hora, coisa nenhuma.

- Então?

- Lembras-te do meu sonho em ser actor?

- Sim!

- Pois bem... Faz quase um mês que abriu um casting para novos actores, na cidade. Todas as terças e sextas havia uma nova prova a passar pelos candidatos aos lugares... Hoje foi a última prova e só ficamos três para o fim. Eu ainda não te tinha dito nada porque queria fazer-te uma surpresa se conseguisse. E consegui... Se tudo correr bem, dedicarei a minha vida a este sonho e deixarei o cargo na ‘Paraíso Electrónica’. Claro que vou ganhar menos, mas o dinheiro não é tudo... Não achas, meu amor?

- Claro, Mário... O dinheiro não é tudo!

Reflexões de Eu e o Universo

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VIVE-SE O UNIVERSO
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Passeiam os astros e reinventam os destinos dos homens...
Cansa-se a lua no desenho perfeito das marés...
Inspiram-se as almas no movimento cósmico do Universo!
Lá em cima – ou será lá em baixo (?) -, os Deuses traficam influências e vendem-se às vontades dos espíritos...
Lá em baixo – ou será lá em cima (?) -, os demónios e o Diabo combinam entre si, as tentações aos corpos e às almas dos corpos.
Em lado nenhum, o nada impera e interroga-se acerca da sua inexistência...
Por aí, combinam-se as energias e discutem-se as vidas!!!
Algures morrem nomes que foram pessoas...
Em algum sítio, nasce e chora uma criança...
Vive-se o Universo!!!
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O TEU VALOR
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O valor que têm as coisas raras...
E mais valor têm ainda, as coisas únicas!
O repetido perde valor!!!
O original valoriza por se chamar assim...
O ouro é raro...
Tu és único e não há qualquer repetição de ti!!!
Não há cópias da tua individualidade...
Logo, tens valor!
Muito valor, não por seres raro, mas por seres único!
Então, valoriza-te ainda mais, sendo original nos teus actos...
Só assim, os mesmos se tornarão mais valiosos!!!
Porque têm valor as coisas raras e mais valor têm as coisas únicas...
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QUEM EXPLICA AOS POETAS???
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Quem explica aos poetas que a vida nem sempre faz sentido?!

Quem explica aos poetas que os caminhos não têm de rimar?!

Quem lhes explica que as estrofes do dia-a-dia nem sempre obedecem a regras?!

Quem lhes explica as metáforas dos imprevistos e as semânticas do destino?!

Quem explica aos poetas que a vida nem sempre faz sentido?!

Quem lhes explica o que não se pode explicar?!
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PENSO O UNIVERSO
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Dou à luz pensamentos...
Pensamentos que nascem em mim e entoam no Universo à velocidade da luz...
Pensamentos que, após reflectidos nesse mesmo Universo, mudam tudo!!!
Nada fica como antes, após um pensamento!
O Universo muda de cada vez que o Homem pensa...
Responsabilidade pesada, esta de pensar!!!
Temo não ter o cuidado de pensar que estou a pensar o Universo e a construi-lo de cada vez que dou à luz um pensamento...
Temo até, destrui-lo com os meus pensamentos toscos!
Dou graças a esse pensamento chamado Deus, de haver quem pense bem, a emendar e remendar os perigos que eu espalho por esse Universo fora...

Eliseu Pinto

Que bem que me lembro do Eliseu Pinto, esse velho pintor de aspecto bonacheirão...

Eliseu Pinto era acima de tudo, um artista! Das tintas, tudo fazia. Tanto lhe interessava se pura e simplesmente pintava de branco as paredes, ou se inspirado no que fosse, pintava extraordinários quadros de bonitas paisagens ou de esbeltas mulheres nuas e seminuas. Gostava de cores e de formas, e sobretudo de dar cor às formas, desenhá-las e pintá-las, dando alma a coisas sem vida e dando vida a coisas sem alma.

Certo dia, o Jacinto Glória, presidente da junta cá da nossa freguesia, resolveu que era altura de repintar o interior da igreja desta nossa pacata terra. A ideia era transformar o ambiente menos pesado, uma vez que as pinturas existentes na altura, retractavam um Cristo sofredor agarrado à cruz com a ajuda de uns pregos, meia dúzia de fieis ajoelhados perante uma santa com um ar triste, e um homem arrastando-se por qualquer motivo dito divino. O padre Salomão de Deus concordou com a ideia do então presidente da junta e logo trataram de falar ao Eliseu. Explicaram ao pintor que a ideia era transmitir um ambiente harmonioso aos fieis, pintando algo que desse um ar menos pesado à igreja da terra, deixando o resto a seu critério, confiando-lhe a responsabilidade de ser ele a aplicar as suas ideias e por conseguinte contribuir com toda a sua arte.
Durante dezoito dias, a igreja teve fechada somente para o Eliseu. Por dois domingos seguidos, a missa foi dada no anfiteatro recém construído cá na terra. Durante esse tempo, as pessoas perguntavam-se curiosas, sobre o que estaria Eliseu Pinto a pintar na igreja. Mas para o que ninguém tinha resposta, a dita só surgiu após esses dezoito dias de espera e ansiedade.
O padre Salomão de Deus organizou uma festa para o povo, na qual se abririam as portas da igreja e se viria pela primeira vez, o trabalho de Eliseu Pinto. Nem o próprio padre tinha visto ainda a obra do pintor. À hora marcada, o padre abriu então as portas gigantes que davam para o interior da velha igreja, agora modernizada. As pessoas começaram a entrar e a admirar o árduo trabalho do artista Eliseu. Primeiro, ficaram boquiabertas com a perfeição da imagem de uma santa com um ar alegre, abraçada a pessoas do povo... Depois, consoante iam avançando, surgiam pinturas de pombas brancas, transmitindo harmonia e paz aos crentes que usufruíam das instalações da igreja de Terranova. Todos pareciam rejubilar-se com o novo espírito harmonioso da igreja, até que se depararam com uma imagem algo duvidosa, precisamente no lugar aonde antes estava a pesada imagem do sofredor Cristo na cruz... Esta nova imagem pintada por Eliseu Pinto, mostrava um tipo com feições médio-orientais subido aos céus, falando aos seus crentes.
- O que representa isto? – Ouviu-se entre as vozes do povo, nesse dia sem igual em que toda a população se apresentou em massa na igreja, a fim de conferir o trabalho do artista Eliseu Pinto.
- Representa Jesus, no dia da sua ressurreição, três dias depois de... – Explicava Eliseu, quando foi interrompido por Oscar Alho, um habitante polémico e maldizente, engenheiro de confusões e alaridos:
- Mas Jesus não é preto! Este tipo está doido...
O alarido foi total, e todos pareciam esquecer-se que estavam numa igreja...
- Mas o homem não é preto, é somente um pouco mais escuro do que nós por se tratar de um oriundo do médio oriente. Não faz sentido, que alguém nascido em Jerusalém seja um tipo muito branquinho e de olhos claros... As feições de Jesus eram necessariamente viradas para o Árabe. – Tentava explicar Eliseu, sem que ninguém o ouvisse realmente com atenção.
- Que decepção! - Exclamou a profundamente religiosa Lídia Neta, referindo-se ao trabalho de Eliseu Pinto.
A opinião de Lídia generalizou-se e todos com excepção do padre Salomão de Deus, pareciam esquecer o fascínio sentido ao entrarem na igreja. Até o senhor Duarte, dono do Museu Du’Arte, ficou deveras decepcionado com tamanha falta de sensibilidade do seu principal colaborador. Ouviram-se inúmeros protestos e até a Dona Débora Amilcar Alho, a esposa brasileira do polémico Oscar Alho deu a sua opinião, exclamando que ‘foi pior a ementa que o cimento’. Coitada de Dona Débora que jamais tinha feito a emenda de um soneto, obrigada que tinha sido toda a vida, a instruir-se no meio das barracas de uma favela carioca.
Não querendo alimentar polémicas na própria casa de Deus, o próprio padre se encarregou de, uma semana depois, contratar um pintor da cidade com o fim de repintar a igreja. A missa continuou a ser rezada no anfiteatro por mais quatro domingos.
Passados esses quatro domingos, o trabalho do pintor citadino pode então ser fiscalizado pelo povo, em mais uma festa organizada pelo padre de Terranova. Entre o povo, a opinião geral foi de que as pinturas podiam não ter a mesma arte e beleza que as de Eliseu, mas eram certamente, mais adequadas...
O Cristo branquinho e de olhos claros, voltou finalmente à cruz de onde tinha sido libertado por uns dias. Desta vez, pelas mãos do próprio povo que dizia ser-lhe fiel.

Puniu-se, porventura, regressando

Abriu os olhos! Planeou o despertar. Olhou e reparou nesse belo corpo de mulher a seu lado. Conquistou-lhe um sorriso e navegou por pensamentos perversos, doces, quase reais – ou não fosse essa definição de espaço/tempo. Sonhou acordado, as formas e os carinhos sobre as formas...
Puniu-se, porventura, regressando!!!
Perguntou aos astros, o significado da alma daquele ser deslumbrante, belo, quase irreal – ou não fosse essa definição de espaço/tempo. Conceituou o espírito dessa mulher e resumindo-lhe o sentido do seu ser, acolheu-a no seu leito interior. Pensou-a da forma que a queria ver, da forma como queria que ela fosse. Inventou dela e sobre ela, para si! Inventou que o sol que assaltava o seu belo rosto através das cortinas, a tornava angelical. Inventou que o aroma doce trazido pela brisa fresca na janela semiaberta era um convite dos Deuses para a levar a passear... Inventou que a sua meiga voz matinal era um convite dela para ele se passear no seu corpo bem desenhado. E, quase se sujeitou ao desejo, não tivesse o seu subconsciente se comprometido com a moral...
Puniu-se, porventura, regressando!!!
Imaginou-a num lugar obviamente abaixo de Deus, mas decerto acima de anjo! Percorreu-lhe a perfeição e morou-a no paraíso... Embriagou-se, sem ter sede, nos sentidos para além daqueles quem morrem nos homens. Afogou-se em marés que não levam a oceano algum. Perdeu-se por lados nenhuns sem se querer encontrar, jamais! Fugiu, sem correr para sítio algum que obedeça a essa definição de espaço/tempo...
Puniu-se, porventura, regressando!!!

Peça de teatro

Cenário da peça: Uma sala branca, com uma janela enorme, cobrindo toda a parede por detrás das pessoas em cena. Para lá da janela – do lado de fora -, só se vê a noite, no seu todo, com os astros em realce, representando o Universo. Do lado de cá – dentro da sala -, dezenas de pessoas vestidas em tons de cinzento – umas em movimento, outras não - que parecem falar entre si, mas das quais não se ouve qualquer ruído, como se todos fossemos surdos no que toca a ouvi-las, mas vemos-lhes o gesticular dos braços e dos lábios, como se estivessem mesmo a conversar. Ainda à frente dessas mesmas pessoas, vestido de vermelho, bem destacado, um só homem, falando para o nada, em voz alta, usando uma expressão de quem procura qualquer coisa:

Homem - Óh felicidade fugidia, que teimas em não aparecer, por onde andas tu, que nunca te conheci?! Estás, porventura, aqui?!

Resposta - Aqui… (ouve-se ao longe)

Homem – Sejas bem-vinda, finalmente… Obrigado por responderes ao meu chamamento que de ti tanto tenho andado necessitado… Mas mesmo assim, não te vejo, só te ouço. Onde estás, para que te olhe de frente e te conheça finalmente, para que acredite que estás mesmo aqui…

Resposta – Aqui… (ouve-se ao longe)

Homem – Olho à volta (enquanto olha à volta) e continuo sem te ver… Será que tens imagem e que te posso ver?! Se sim, mostra-te agora e aqui…

Resposta – Aqui… (ouve-se ao longe)

Homem – Começo a deixar de acreditar em ti… Só repetes que estás aqui, aqui, aqui, mas não te vejo em lado nenhum!!! Pareces eco…

Resposta – Eco… (ouve-se ao longe)

O Homem encara o público, sem dizer nada, cúmplice, e compreendendo que tudo o que ouvia era simplesmente o eco das suas últimas palavras, começa a declarar em voz de lamento:

Homem – Óh felicidade, porque estás em todo lado, menos aqui?! (apontando para os seus pés)

Homem – Óh felicidade, porque andas por todo lado, menos por aqui?! (abrindo os braços)

Homem – Óh felicidade, porque passas por todo lado, menos por aqui?! (apontando para as pessoas que parecem falar atrás de si)

Homem – Óh felicidade, porque vais a todo lado, menos aqui?! (apontando para o público)

Homem – Óh felicidade, porque te impões em todo lado, menos aqui?! (fazendo um gesto que abrange todo o salão, palco e público)

Homem –Óh felicidade, porque estás em todo lado, menos aqui?! (olhando o público olhos nos olhos)

Homem - Aqui, no UNIVERSO… (virando-se para trás e apontando para a janela)

Depois, voltando-se de novo de frente para o público, o Homem despe a roupa vermelha que trás vestida, e por baixo, eis que surge uma roupa cinzenta, tal qual a roupa dos restantes homens e mulheres que vagueiam atrás de si…

O desenhador e o escritor

Sentam-se ambos na cabeceira de uma mesa redonda. Ambos puxam de um lápis de carvão e de um papel branco, por entre a confusão instalada na extremidade da mesa.
O desenhador traça uma primeira linha; O escritor lança uma primeira palavra...
O desenhador observa minuciosamente a linha desenhada sobre o papel branco, ao passo que o escritor faz exactamente o mesmo em relação à sua palavra...
Ao desenhador, vem-lhe à ideia que algo pode nascer daquele traço até então insignificante; Ao escritor inspira-se-lhe uma forma de dar seguimento à sua primeira palavra...
Ambos embalam em seus projectos, dançando os respectivos lápis sobre a pista branca de papel... O desenhador em seus traços perfeitos e suas sombras imperfeitas; O escritor em suas metáforas e seus trocadilhos gramaticais, figurando ao estilo de sua caligrafia...
O desenhador dá um toque final ao seu desenho, tendo em atenção pormenores que o enriquecem; O escritor sintetiza o seu trabalho escrito verbalizando uma conclusão brilhante que arrebatará qualquer leitor...
Ambos concluem as suas obras e ficam de olhos postos sobre estas, conhecendo-as então, após terem sido deuses das suas criações...
O desenhador dá conta de que talvez a sua obra não seja assim tão admirável, como a princípio julgaria; O escritor apercebe-se de que o seu texto ganhou um duplo sentido que ele não lhe desejaria atribuir...
Ambos puxam dos papéis brancos sobre a mesa redonda que algum carpinteiro imperfeitou, e rasgam num só golpe mortal, a obra há instantes concluída...
O desenhador senta-se no sofá e esportula-se de uma revista literária onde lê alguns textos que lhe acalentam a alma frustrada... Lê alguns textos e pensa para si próprio: “Quem me dera saber escrever!”
O escritor senta-se na poltrona e delicia-se a observar os desenhos a carvão sobre a parede branca da sua sala de estar, falando para os seus botões: “Quem me dera saber desenhar!”
Ambos acendem as suas televisões no mesmo canal, e, em lugares tão distantes de um mesmo país, ambos vêem sem muita atenção, um programa musical de cantores que não sabem cantar!!!

Veio visitá-lo

Veio visitá-lo...

Veio visitá-lo naquele dia! Assim, sem mais nem menos…

Apareceu-lhe, passados mais de trinta anos. Trinta e dois, para ser mais preciso…

Quis o destino que nunca mais se vissem desde o dia em que um abandonou o outro, numa divergência de ideias que surgiu em consequência do que um dizia ser um projecto apaixonante e o outro dizia ser um projecto de risco que não valia a pena levar a avante…

Agora, vinha visitá-lo precisamente numa altura em que este se debatia com um novo desafio que lhe podia alterar a vida. Talvez tentasse, mais uma vez, e ao fim de tantos anos, voltar a interferir nas suas decisões.

Apresentou-se exactamente com o mesmo ar juvenil e com os mesmos ideais destemidos de há mais de trinta anos atrás. Continuava a mesma criança atrevida e alegre que um dia o abandonara nos seus princípios adultos…

E ele, o mesmo tipo cheio de dúvidas que já tinha deixado de ser desde o dia em que se viram pela última vez. Agora, voltara a sê-lo em consequência de uma paixão por uma bela mulher que lhe despertara alguns sentidos que, fazia muito tempo, estavam adormecidos. Voltaram então, as dúvidas: seria adequado voltar a apaixonar-se com a idade que tinha? Seria conveniente deixar que o coração tomasse o comando do seu navio? Seria oportuno abandonar alguns dos princípios que considerava fundamentais em prol de emoções até então camufladas? Seria cómodo correr o risco de tudo não passar de mais uma desilusão?

Todas as dúvidas coincidiam agora, com a visita inesperada daquele que o abandonara há mais de trinta anos – trinta e dois, para ser mais preciso –, daquele que vinha de novo para se intrometer nas suas decisões mais difíceis, daquele que se apresentava com o mesmo ar juvenil e com os mesmos ideais destemidos de sempre.

Esse, o seu espírito infantil, a criança que ele tinha sido um dia, não deixaria que este o expulsasse novamente da sua vida. Não agora, que se tinha dado ao trabalho de voltar...

Não agora, que tinha a derradeira oportunidade de voltar a andar de mãos dadas com ele. Não agora, que sentia viver outra vez...

Pôr-do-sol

O rapaz queria pegar fogo ao mar... Sem sucesso!!!

Mal lhe tocou com o fósforo, este apagou-se.

Resolveu tentar de novo, mas o vento falou, e deu ordem ao fósforo para que cessasse o fogo.

O rapaz, habituado a ser persistente nos seus quereres, poderes e mandares resolve puxar de outro fósforo. Este terceiro, talvez zangado com a vida, eis que se tenta pelo suicídio e atira-se dos dedos imponentes do rapaz e cai sobre a areia semi-molhada.

O rapaz desgostoso, tenta em vão ressuscitá-lo... Vai de raspá-lo nas paredes laterais da caixa, numa luta louca pela vida do pobre fósforo. Sem sucesso, mais uma vez.

Mas o rapaz estava habituado a ouvir o pai dizer-lhe “sê persistente e luta pelo que queres”, e acima de tudo, tinha aprendido que dava sempre resultado seguir os conselhos do seu progenitor. Então, nesse mesmo sentido, toca de tentar mais uma vez... Acendeu o fósforo debaixo do casaco, de modo a que este não ouvisse, novamente, as ordens do vento... E este não ouviu! Mas, havendo dias, como os há, em que o Universo parece querer contrariar as vontades dos homens - e dos rapazes -, eis que o enxofre libertado consequente do exorcismo imposto ao pobre do fósforo, tenta por via nasal, possuir a alma do rapaz. Azar, o do invasor... Mal entrou pelo nariz, foi imediatamente expulso pela boca, levado num espirro que a alma concedeu ao corpo. Voltou ao fósforo, o atrevido! Revoltado, apagou a chama que ele próprio ajudara a atear. Revoltado, ficou também o rapaz, que vira desfeita mais uma tentativa de pegar fogo ao mar. Zangado, resolve-se por pegar fogo à caixa dos fósforos e deixa-a cair sobre a areia semi-molhada... Lá dentro, os pobres, desesperados, ardendo com a própria casa, rezam por um milagre, enquanto o rapaz se afasta frustrado e sem sentimento de culpa. De súbito, uma onda atropela a caixa semi-ardida, deitada sobre a areia, e arrasta-a consigo para o mar imenso. O rapaz, já longe, olha cruelmente para trás, numa tentativa de ver uma caixa de fósforos ardida... Eis que vê, lá atrás, um imenso mar a arder, perdendo a cor azul para um tom laranja vivo que se torna, a cada segundo que passa, mais evidente...
- Consegui!!! – Gritou extasiado, o rapaz, quase incrédulo.

Desde esse dia, todos os dias à mesma hora, o rapaz voltava ali e punha uma caixa de fósforos a arder a beira-mar... Depois, esperava que viesse uma onda e levasse consigo a dita caixa. Todos os dias, ao fim da tarde, o rapaz assistia ao extraordinário cenário que ele próprio provocava, e ficava ali a ver o mar arder, quase descrente de tanto poder que pode ser concedido aos homens - e aos rapazes - pela simples vontade de se querer.